NOTA DE REPÚDIO DA ANPUH-GO

NOTA DE REPÚDIO

Arte é o exercício experimental da liberdade.

Mário Pedrosa

Na manhã do dia 2 de maio deste ano, a professora de História Laura Macêdo foi à instituição de ensino onde trabalhava, em Aparecida de Goiânia, usando uma camiseta com os dizeres “seja marginal, seja herói”, de autoria de um dos maiores artistas brasileiros, Hélio Oiticica. Produzida em 1968, a estampa impressa em uma bandeira somava aos dizeres a imagem do corpo de um homem de braços abertos. Idealizada em 1968, a obra era sintoma das restrições impostas à liberdade pelo governo ditatorial. Pouco tempo depois, seria decretado o Ato Institucional número 5, um dos maiores atentados à democracia e à liberdade no Brasil. A marginalização imposta a uma parcela significativa da população era uma das preocupações centrais dos artistas da época.

Para tratar de Oiticica, é justa a frase conhecida de Ferreira Gullar, “a arte existe porque a vida não basta”. Isso implica dizer que a arte é criadora de uma percepção que nos faz evadir de uma realidade mecânica, infértil e opressora para encontrar os recursos que alarguem a vida e os sentidos. E, por isso, provoca, incomoda e transforma. Nas vias públicas, liberdade controlada e medo conviviam com o experimentalismo, em fins da década de 1960. À constância da repressão, os artistas respondiam: “esta vida não basta”. A arte ria, e continua rindo, do poder, anunciando novas faces, modos, recursos e experiências. No contexto mencionado, Oiticica dialogava com o chamado movimento “Marginália” ou “cultura marginal”. “Ser marginal” era uma reação, uma reação àquela vida que não bastava. Defensor da anti-arte, avessa ao senso-comum e aos padrões, Hélio Oiticica chamava o espectador a interagir com o objeto artístico; seus Parangolés tornavam-se, também, vestimentas, dando vida a uma arte que “andava” nas galerias e fora delas. Por essa razão, o artista é ícone de uma pungente expressão da cultura nacional, e fala não somente por si, mas por muitos. Estranho – e absurdo – seria a História não se interessar por sua produção artística. Mais estranho ainda seria a História se calar diante das tentativas de cercear a liberdade de expressão.

Desde a postagem de uma imagem com a camiseta em suas redes sociais, a professora convive com ataques digitais de apoiadores do ex-Presidente. Após a escola em que trabalhava receber reclamação de pais e responsáveis de alunos, a docente foi demitida por ligação telefônica.

Não compactuamos com o “denuncismo” infundado e covarde que vem ocorrendo em Goiás. Não nos calaremos diante dos desmandos que vêm sendo praticados por políticos descomprometidos com conquistas obtidas ao longo dos tempos, referendadas pela Constituição de 1988. Assim como os nomes das ruas, a arte ensina história o tempo todo. Cabe a nós problematizá-la.

Como lugar de criação e intercâmbio com as experiências vividas, a arte é uma das formas mais evidentes da singular expressão humana. Diferencia-nos de outros animais porque carrega planejamento e pensamento e, sobretudo, porque exige uma relação entre tempo e percepção que demanda elaboração, cultivo. É recorrente que o autoritarismo busque se consolidar atacando as artes, minorando sua presença nos currículos escolares. Por exemplo, a arte moderna já foi classificada como “degenerada” por desafiar padrões de pureza, perfeição e harmonia, ação que resultou na exclusão e no extermínio.

A ignorância segue à contramão do processo reflexivo, cerceia a produção amorosa do saber. Nesse processo, educadores e educadoras vão se tornando alvo de projetos políticos que se valem do anseio das famílias em garantir uma boa formação a seus filhos. A professora foi atacada nas redes sociais por um Deputado Federal da extrema direita, cujo conhecimento em Educação e História é formado por frases de efeito e opiniões acerca de fatos propositadamente descontextualizados. Em arena pública, devia haver respeito aos mais diversos campos formativos, mas o ataque severo à Educação e à História tem por objetivo despersonalizar e desprofissionalizar os referidos campos. Qualquer discussão acadêmica séria é pervertida pela espetacularização midiática. O Colégio que a demitiu se pronunciou em nota a favor dos parâmetros de ensino que, igualmente, desrespeitam o campo e legitimam o denuncismo. No mínimo, isso revela que as escolas, espaços de formação privilegiados, se somam, cada vez mais, à espetacularização e se rendem à pressão política. Essa realidade é goiana, mas não apenas, estende-se às esferas nacional e internacional.

Entre muitos outros, Paulo Freire nos conclama à indignação contra a injustiça, a desigualdade social e o desmando de poderes constituídos. Na escola, educadores e educadoras devem atuar nesse sentido. Compõe o papel de todo professor e professora de História sistematizar o conhecimento, afirmando-o eticamente. Ao compartilhar com alunos e alunas a problematização em torno dos temas históricos, a formação realiza seu devir, a emancipação. Cabe a nós trabalharmos os conteúdos de modo a desconstruir traços colonialistas, rumo a uma educação antifascista e autônoma, tão necessária à vida plena e cidadã.

Enzo Traverso nos inspira quando alerta que o bom historiador é aquele que produz a história crítica. Por sua vez, a crítica pressupõe compreender e julgar. Compreender é uma capacidade afetiva de se abrir ao outro, ao desconhecido, ao que toca. Essa operação solicita criar um espaço em que a incerteza provoque curiosidade. Depois de compreender, acolhendo o dissenso, se pode examinar em detalhe, o que preceitua o domínio de um campo. Decorre disso que, para realizarmos a história pretendida, as guerras, a necropolítica, as artes, são – devem ser – objeto de debate em sala de aula, pois o que nos chega é fruto de um fazer coletivo, cuja matéria-prima é o tempo. Enfim, tudo
interessa à História! Dito isso, Laura Macêdo tem nosso apoio. Ela atua ética e criticamente no ofício da sua profissão.

Nós, unidos em torno da Associação Nacional de História, seção Goiás, representantes de professores pesquisadores de História do estado, repudiamos todo e qualquer ataque realizado a pessoas sérias, que, no ofício de sua profissão, são ultrajadas pelo desconhecimento ou má fé de políticos que usam as salas de aula para reforçar uma concepção de mundo que não cabe mais no planeta em que vivemos.

Associação Nacional de História – seção Goiás (Anpuh-GO)

Faculdade de História – UFG

Centro Acadêmico de História – UFG

Curso de História – PUC-GO

Centro Acadêmico de História – PUC-GO

GT Ensino de História da Anpuh-GO

GT Histórias Públicas da Anpuh-GO

GT História e Patrimônio Cultural da Anpuh-GO

Goiânia, 07 de maio de 2023