MANIFESTO EM DEFESA DOS DIREITOS DAS VÍTIMAS DE PERSEGUIÇÃO POLÍTICA NA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA

Nos primeiros dias de fevereiro (7 e 10) deste ano de 2019 a Revista IstoÉ publicou a matéria intitulada "A Farra das Indenizações", que por meio de imprecisões técnicas e notícias falsas, busca desmerecer o trabalho realizado pela Comissão de Anistia ao longo da sua existência e questionar os direitos das vítimas da ditadura. Tal matéria começou a circular concomitantemente à movimentação no Senado Federal em prol de uma CPI para investigar as reparações efetuadas pelo Estado brasileiro por intermédio da Comissão de Anistia aos que foram perseguidos políticos no Brasil no período delimitado pelo texto constitucional (de 18 de setembro de 1946 a 05 de outubro de 1988). Do mesmo modo, a matéria reverbera declarações públicas da ministra Damares Alves que vem levantando suspeitas sobre o trabalho da Comissão de Anistia. Tanto a proposta da CPI como as declarações da ministra Damares são desprovidas de fundamentos que as justifiquem. Alegam que almejam a transparência, mas em verdade colaboram para um processo de revisão histórica comprometido com a tentativa de suavizar a brutal ditadura civil-militar que acometeu o país, e de estigmatizar os que foram por ela perseguidos, o que atenta explicitamente contra o pacto constitucional de 1988. A ditadura foi responsável por inúmeras violações de direitos que atingiram amplamente a sociedade brasileira, desde o cancelamento de liberdades públicas (direito de manifestação, de associação, de opinião, direito de eleger diretamente seus representantes e demais direitos políticos, de se organizar, de debater, de expressão artística, entre tantos outros) até demissões, inclusão de nomes em listas sujas, prisões arbitrárias, torturas brutais, assassinatos e desaparecimentos forçados.

De início, a matéria omite um importante esclarecimento: o de que, muito embora o período de saída da ditadura e de promulgação de uma Constituição democrática já tenha passado, o Brasil, a exemplo de tantos outros países que amargaram períodos autoritários e de violação massiva de direitos pelo Estado, ainda está enfrentando o legado autoritário e ainda possui graves pendências no seu processo de justiça de transição, desde a busca do paradeiro dos cadáveres dos desaparecidos políticos até o julgamento dos torturadores, a revelação de documentos e informações sonegadas e a reparação de muitas pessoas que ainda não foram reparadas. A transição política propriamente dita é uma coisa, a pendência de deveres estatais gerados pela aventura autoritária é outra, e é um saldo que só pode ser cumprido na democracia. São deveres imprescritíveis, assim reconhecidos de modo pacífico pela legislação e pelos tribunais internacionais.

A matéria também não informa que a Comissão de Anistia foi criada e começou os seus trabalhos ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, que através da MP N° 2.151/2001, depois convertida na Lei N° 10.559/2002, regulamentou o que já estava previsto na Constituição de 1988 (Art.8° do ADCT), promulgada durante o governo de José Sarney. A Comissão de Anistia é uma Comissão do Estado brasileiro, que não se confunde com os diferentes governos pelos quais passou.

Antes de enfrentar os pontos centrais destacados pela matéria e reverberados por membros e setores do Executivo e do Legislativo, é preciso frisar que a Comissão de Anistia brasileira é reconhecida internacionalmente justamente pela sua atuação transparente e rigorosa. Cada um dos processos foi analisado e decidido em julgamentos públicos, abertos a quem quisesse assistir, muitos deles foram inclusive, no bojo do projeto Caravanas da Anistia, apreciados em quase todos os Estados do Brasil, em praças públicas, assembleias, universidades, colégios, associações civis, eventos nacionais e internacionais, nos quais os Conselheiros e Conselheiras discutiam abertamente suas compreensões do caso e da legislação e manifestavam seus entendimentos por escrito em seus votos. A Comissão brasileira destaca-se de outras comissões de reparação no mundo justamente pela sua transparência nos julgamentos. A Comissão de Anistia chegou até mesmo a publicar um livro com dezenas de votos e decisões representativos do seu trabalho (http://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/anistia/anexos/livro-dos-votos-versao-final-20-08-2013.pdf). 

1. Diferente do que é afirmado na matéria do semanário, o pagamento da anistia politica do ex-presidente Lula não é gerenciado e nem foi determinado pela Comissão de Anistia. A sua reparação econômica é decisão do Ministério do Trabalho nos anos 90 (como já assinalado a Comissão de Anistia não existia antes de 2001). Nesta época, se concediam incialmente as anistias políticas com um valor fixo e depois eram estabelecidos os valores dos benefícios de pagamento mensal. Nesta época, o líder sindical Lula (igualmente a outros milhares de trabalhadores perseguidos políticos em diferentes regiões) recebeu R$ 57 mil de pagamento inicial e, em seguida, o direito ao pagamento mensal de R$ 3,2 mil a título de aposentadoria excepcional de anistiado, paga pelo INSS, em decorrência da então recente aprovação da Constituição de 1988 e seu dispositivos no art. 8 do ADCT. Trata-se de um direito que existe há mais de 25 anos. Com o advento da Lei N° 10559/2002, todas as aposentadorias excepcionais de anistiados políticos que haviam sido outorgadas pelo Ministério do Trabalho, e também por outros Ministérios que concederam reparações, deveriam ser convertidas para o regime do anistiado político que tem como fonte pagadora o Ministério da Planejamento. A conversão é simples ato administrativo obrigatório que tem como simples efeito prático a mudança de fonte pagadora, do INSS para o Ministério do Planejamento, sendo proibido legalmente a descontinuidade do pagamento de seus direitos. A anistia política do ex-presidente, como é fato notório, é decorrente de sua perseguição política e prisão arbitrária nos anos 70 e em nada se relaciona com o acidente de trabalho que lhe ocasionou lesão física na sua mão, ou qualquer outra circunstância que não a perseguição sofrida.

2. A Lei N° 10.559/2002 estabelece duas hipóteses de reparação econômica aos que foram perseguidos políticos pelo Estado brasileiro: a prestação única e a prestação mensal, permanente e continuada. A primeira prevê uma prestação única aos que sofreram outras formas de punições motivadas por perseguição política que não a perda do vínculo laboral. O critério previsto é o de 30 salários mínimos por ano de punição, podendo atingir no máximo o montante de R$ 100 mil (Art.5°). A outra hipótese é destinada aos que conseguirem comprovar que perderam seu vínculo laboral por motivo de perseguição política. A partir daí a Comissão faz um cálculo do valor mensal devido, com base em critérios explicitados na lei (valor ao qual faria jus se não houvesse perdido o trabalho, pesquisas de cargos e salários, informações oficiais prestadas por órgão públicos, entre outros descritos no Art.6°). Nesses casos a lei prevê um valor mensal vitalício, devido apenas ao anistiado e seus dependentes (não aos seus sucessores). A lei também prevê um valor retroativo de 5 anos a partir do primeiro pedido de reparação formulado pelo anistiado após a promulgação da Constituição de 1988. Este retroativo é acessório à prestação mensal e é calculado com base nela. Uma modalidade de reparação não pode ser cumulada com a outra (Art.3°, § 1°). Sobre a prestação mensal, permanente e continuada, inclusive, a Comissão de Anistia, desde pelo menos o ano de 2007, vinha adotando de modo predominante o parâmetro de valores salariais médios estipulados por pesquisas de cargos e salários. Importante também registrar que além da reparação econômica, a Lei prevê outras modalidades de reparação (Art.1°): conclusão do curso ou registro do diploma para estudantes que tiveram de interromper seus estudos ou que se formaram no exílio; reintegração de servidores públicos civis e de empregados públicos que foram demitidos por terem participado de greve ou que foram afastados em processos administrativos com base na legislação de exceção; a própria declaração de anistiado político; e, por fim, a contagem de tempo para todos os efeitos durante o período da perseguição.

3. Antes mesmo da edição da Lei N° 10.559/2002, a Constituição de 1988 no Artigo 8°, § 5° do ADCT estabeleceu explicitamente que a anistia se aplica "aos servidores públicos civis e aos empregados em todos os níveis de governo ou em suas fundações, empresas públicas ou empresas mistas sob controle estatal, (...) que tenham sido punidos ou demitidos por atividades profissionais interrompidas em virtude de decisão de seus trabalhadores, (...) ou por motivos exclusivamente políticos (...)". Ou seja, fica claro que a Constituição indica a reparação econômica tanto para os trabalhadores que foram punidos ou demitidos por motivos exclusivamente políticos, como para os que foram punidos ou demitidos por terem participado de greves. Também nunca é demais ressaltar que a ditadura criminalizou o direito de greve e que trabalhadores que com ela se envolviam eram considerados subversivos e eram perseguidos, quanto mais se atuavam no âmbito público, daí nossa Lei Maior, fruto do pacto de redemocratização do país, ter previsto como condição para anistia nesses casos apenas a participação em greves como causa suficiente para a sua concessão.

4. Também a matéria faz referência aos filhos e netos de presos/as e perseguidos/as políticos atualmente anistiados, que possuem este direito não por nenhum tipo de “perseguição reversa” decorrente da perseguição sofridas pelos seus pais, como erroneamente afirma a matéria. Como pode ser observado individualmente em seus processos de anistia política, todos eles/as têm o direto de serem anistiados porque sofreram DIRETAMENTE as consequências de atos de exceção em suas vidas: alguns foram presos como estudantes e eram menores de 18 anos (em flagrante violação a própria lei penal vigente no período), alguns foram presos juntos com seus pais (violados em seus direitos à liberdade), outros foram exilados com a família (violados em seu direitos de viver em seu país), outros foram compelidos a viver na clandestinidade (violados em seus direitos a identidade e convivência familiar), outros foram afetados pelo direito de ter o nome de seus pais desaparecidos políticos em suas certidões de nascimento (violados em seus diretos a identidade), dentre outras tantas barbáries típicas cometidas pela ditadura civil-militar. A lei e a Constituição são muito claras em estabelecer que todas as pessoas atingidas por atos de exceção tem direito a serem declaradas anistiadas políticas e devem ser reparadas por danos sofridos por ação arbitrária
do Estado. A referência genérica a este tema na matéria é uma ofensa a todas as vítimas crianças e adolescentes que tiveram seus direitos humanos violados pela ditadura militar.


5. A pedido do próprio movimento de ex-presos/as e perseguidos/as político/as nos anos 2000, a lista geral de anistiados/as políticos sempre esteve disponível nos sites dos respectivos ministérios pagadores. Uma rápida consulta aos sites do Ministério da Defesa para o pagamento dos anistiados militares (https://www.defesa.gov.br/arquivos/lai/anistia/2018/novembro/reparacao_mensal_beneficiados_lei_10559_eb_nov_18.pdf) e do antigo Ministério da Justiça e do Planejamento para o pagamento dos anistiados civis (http://www.justica.gov.br/seus-direitos/anistia/pessoas-anistiadas/pessoas-anistiadas-ate-outubro-de-2018.pdf/view). A partir da lista geral publicada nos dois sites sempre esteve disponível no Portal da Transparência a possibilidade de pesquisar individualmente, pelo nome, os valores recebidos por cada anistiado político neste site: http://www.cgu.gov.br/noticias/2015/01/portal-da-transparencia-publica-dados-dos-beneficiados-pela-lei-da-anistia. Por razões que desconhecemos, lamentavelmente de um ano para cá estes sites muitas vezes estão indisponíveis ou fora do ar.


6. A matéria está correta em afirmar que a maioria dos anistiados/as políticos é composta por nomes desconhecidos do grande público. Os atos de exceção da ditadura alcançaram amplos setores sociais, o que revela sua brutalidade e violência. As pessoas listadas na matéria como "petistas" foram anistiadas por histórias de perseguição anteriores à própria existência do PT. A história da ditadura revela a perseguição aos setores populares, estudantis, sindicais, camponeses e organizações políticas de esquerda rotuladas de subversivas no contexto da guerra fria. Não deveria ser surpresa identificar que os setores sociais da esquerda foram as principais vítimas de perseguição política em uma ditadura de direita. Na época estes conceitos eram muito claros. No Brasil foram anistiados inúmeros militantes que pertenceram à resistência democrática à ditadura e hoje estão em distintos partidos políticos ou mesmo sem qualquer militância político-partidária. Muitas foram as situações, ainda, de perseguidos políticos e agora anistiados que eram simpatizantes do regime ditatorial, mas tinham algum familiar, amigo ou até vizinho identificado com as lutas democráticas e acabaram sendo também perseguidos. Também houve casos de pessoas vinculadas ao partido de sustentação da ditadura, a Arena, que foram taxadas de subversivas e perseguidas, bem como milhares de militares de todas as patentes que foram perseguidos pelo regime. Não é a militância político-partidária ou de contestação à ditadura que gera o direito à declaração de anistiado político, mas sim a comprovação de ter sido alvo de ato de exceção, ou perseguição com motivação exclusivamente política. A ditadura valeu-se do rótulo da "subversão" para perseguir também muitas pessoas que não possuíam envolvimento real com a contestação ao regime, mas que mesmo assim foram perseguidas sob este pretexto. O que a Constituição fez e a Lei N° 10.559/2002 regulamentou foi a proteção dos cidadãos brasileiros em face do Estado, para que nunca mais se repitam situações do Estado perseguir seus cidadãos por motivação política ou ideológica.


7. A matéria também faz referência a um possível fechamento do direito de postular a reparação. A vasta jurisprudência dos tribunais superiores aponta para a imprescritibilidade das graves violações aos direitos humanos. O que significa que são direitos e reparações que podem ser exigidos em qualquer tempo devido a sua gravidade e a sua importância para afirmar o dever de não-repetição e de proteção do regime democrático. As sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos nos Casos Guerrilha do Araguaia e Vladimir Herzog estabeleceram o dever do Estado em reparar a todas as vítimas. Obrigação internacional ainda pendente de cumprimento pelo Estado brasileiro. Ademais, fechar o protocolo de recebimento de requerimentos de anistia política é ilegal, já que a Constituição não fixou prazo para tanto, justamente porque a qualquer tempo este direito poderá ser invocado. E a Lei N°10.559/2002, na mesma linha, também não estabeleceu prazo para o fim dos trabalhos da Comissão de Anistia. O Estado brasileiro até pode entender que deve realizar as reparações por meios diversos que o estabelecido na Lei N° 10.559/2002, mas tem o dever internacional e constitucional de reparar as perseguições políticas sofridas e jamais poderia, como alardeou a ministra Damares, determinar por decreto o fim dos trabalhos da Comissão de Anistia, seria necessária uma nova lei, na qual seria vedado estabelecer a impossibilidade de se reivindicar a qualquer tempo o direito à reparação. Não se pode impedir nenhum cidadão de arguir a perseguição sofrida por um Estado de Exceção, exatamente porque pretendemos que nosso Estado brasileiro seja um Estado Democrático de Direito.


8. A matéria também faz ilações sobre um possível indeferimento do requerimento de anistia da ex-presidenta Dilma Roussef fundamentado-se na ideia de que a ex-presidenta já tenha recebido reparação em instâncias estaduais. O Brasil é uma república federativa e cada unidade estatal tem responsabilidade administrativa própria. A reparação econômica prevista na Lei N° 10.559/2002 refere-se às responsabilidades da União Federal, por suas polícias políticas, por seus centros de repressão, por sua estrutura persecutória, pelos efeitos daninhos de seus centros de monitoramento ilegal, de seu aparato de morte e repressão. Por sua vez, os estados federados respondem pelas suas próprias ações arbitrárias e também respondem pela violação de seus deveres ao deixar de cumprir sua missão institucional de proteger (e não perseguir) os seus cidadãos. Essa é uma premissa básica do Direito Administrativo no estado democrático de direito brasileiro e em todos os estados de direito ocidentais modernos. O direito à indenização federal não tem como fato gerador os mesmos direitos às indenizações estaduais. Muitas dessas indenizações estaduais não buscavam reparar o amplo leque de punições e de danos listados na Lei N° 10.559/2002, muitas repararam tão somente a tortura, estabelecendo um valor simbólico para esse dano extrapatrimonial. Também não foram poucos os casos nos quais o próprio Poder Judiciário entendeu que o ex-perseguido fazia jus ainda a outras reparações não concedidas pelas comissões de reparação estaduais ou federais. É indubitável que a ex-presidenta Dilma foi atingida por atos de exceção (perseguida, demitida arbitrariamente, presa e torturada). Seu processo só não foi apreciado pela Comissão enquanto exercia a presidência da república, porque ela mesma o havia solicitado. Registre-se, inclusive, que segundo a Lei N° 10.559/2002, nenhum pedido de anistia política poderá ser indeferido ou concedido sem que antes haja uma apreciação da Comissão de Anistia. A ministra não pode deferir ou indeferir antecipando-se e eliminando a necessária manifestação da Comissão de Anistia, que é o órgão que possui a atribuição legal e exclusiva para se manifestar nessa matéria.


9. Outra referência que a matéria aborda de maneira totalmente enviesada é a situação dos militares da aeronáutica que foram perseguidos pelos seus próprios pares. Como a história registra, muitos militares legalistas não aceitaram participar do golpe militar e assim violar a Constituição vigente à época. Antes do golpe de 1964, amplos setores militares nacionalistas apoiaram a campanha da legalidade contra a tentativa de impedir a posse do presidente democrático Joao Goulart. Com a instalação da ditadura de 64, por serem identificados com a esquerda, eles passaram a sofrer perseguições. Este é o caso dos diretores da Acafab - Associação dos Cabos da Fab e de outros atingidos pela Portaria 1.104/64. Esta portaria foi implementada nos primeiros dias da ditadura para limitar a continuidade na carreira da FAB de todos os jovens militares que haviam participado de movimentos políticos pre-64. A FAB, que por ser a força militar mais jovem, estaria contaminada pelas “ideias subversivas”. As Portarias 1.103 e 1.104 foram uma maneira de eliminar os jovens cabos da possibilidade de ascensão nas Forças Armadas. A Comissão de Anistia em 2001 (governo FHC) declarou a referida portaria como um ato de exceção e, portanto, fato gerador do direito à anistia política. Em seguida, a Comissão restringiu essa interpretação apenas aos que estavam vinculados à Força antes da edição da portaria, não concedendo aos que entraram depois. Essa decisão foi fundamentada em sentenças da justiça federal que reconheciam este direito e, inclusive, decisão do STF, que em acórdão julgado pelo então magistrado Nelson Jobim, declarou a Portaria 1.104 “ato de exceção travestido de ato administrativo ”. É bem verdade que esta tem sido uma matéria controvertida dentro da própria Comissão de Anistia e a interpretação inicial hoje não mais persiste, mas ela era respaldada por raciocínio coerente, por discussão interna e transparente da própria Comissão, inclusive transformada em Súmula, e também por manifestações de outros órgãos públicos. De toda maneira, é um tema judicializado e cabe aos tribunais brasileiros tomarem sua decisão final.


10. Durante quase 20 anos o processo de reparação às vítimas foi escrutinado e submeteu-se estritamente às regras jurídicas do país. Não é aceitável que se tente impor mudanças interpretativas sobre os critérios da lei que foram aplicados por diferentes Ministros da Justiça de diferentes governos ao longo do tempo e, com isso, venham a comprometer a continuidade da agenda pendente da transição. A agenda da transição e o processo de reparação às vítimas é uma agenda de Estado e não de governo. Esperamos que não se instale no país práticas de revisionismo histórico. A Comissão de Anistia é uma Comissão de Estado, e não de governo.

11. O que deveria surpreender a opinião pública brasileira não seria que os cidadãos que tiveram seus projetos de vida atingidos e até mesmo sua integridade física e psicológica duramente afetadas pela ditadura, exerçam o seu direito de serem reparados segundo a obrigação do Estado em responsabilizar-se pelos danos que causa a terceiros. O que deveria indignar é o fato de que até hoje não foram julgados os torturadores e assassinos dos centros de repressão. Até hoje não foi revisada a continuidade dos
torturadores nas fileiras das carreiras de Estado e que seguiram recebendo seus salários e aposentadorias manchados de sangue. Não notamos o mesmo interesse da Revista e dos políticos que defendem a moral e a transparência das contas públicas em propor uma CPI, ou em buscar quantificar o montante dos valores pagos a agentes públicos, civis e militares, que causaram os danos pelos quais o Estado hoje é responsável por ressarcir (certamente tais valores são amplamente maiores que os hoje envolvidos na reparação aos ex-perseguidos políticos). Até hoje não foram devolvidos os corpos dos desaparecidos políticos e as mães estão falecendo sem o direito básico de saber a verdade e usufruir o direito de enterrar os seus entes queridos. Até hoje não foram abertos integralmente os arquivos da ditadura para revelar a cadeia de comando e a responsabilidade daqueles que cometeram crimes contra a humanidade. O Brasil é o único país da região onde continua vigente uma total impunidade para os crimes de Estado cometidos no passado.

12. A Comissão de Anistia, segundo a lei, é órgão assessor da Ministra ou Ministro que é titular para a concessão das anistias políticas, por meio de portarias publicadas no Diário Oficial da União. As decisões da Comissão de Anistia têm a natureza de pareceres que são submetidos para a decisão da autoridade competente que pode ou não adotá-los em sua decisão final de outorgar ou não os requerimentos de anistia. Desde a criação da Lei N° 10.559/2002 (precedida pela Medida Provisoria N° 2.151/2001) foram inúmeros os Ministros titulares que cumpriram esta função inerente a seus cargos com um sentido de responsabilidade histórica de se levar adiante a tarefa de superar os legados autoritários do passado e implementar a agenda da transição democrática prevista na Constituição de 88, uma agenda ainda pendente. Em outras palavras, a competência legal para apreciar os requerimentos de anistia política é exclusiva da Comissão de Anistia. O titular da pasta pode concordar e assinar a portaria ou pode discordar e devolver para nova apreciação da Comissão. Mas a competência para apreciação e julgamento dos requerimentos é exclusiva da Comissão de Anistia e de mais ninguém (Art. 3°, § 2° da Lei N° 10.559/2002). Condenamos vigorosamente a tentativa de criar uma CPI sobre as indenizações às vítimas da ditadura. É a primeira vez na história que se criaria uma CPI contra os direitos humanos. Essa iniciativa é um grave retrocesso democrático. Se ela se efetivar será um atentado aos direitos das vítimas da ditadura e um rompimento com os elementos político-constitucionais que permitiram ao país voltar à democracia, com coesão social. Todas as vítimas da ditadura e os seus familiares e apoiadores não aceitarão demagogia política e revisionismo histórico com as suas memórias e os seus direitos. Mobilizaremos, lutaremos e denunciaremos em todas as instâncias nacionais e internacionais contra essa iniciativa que reacende, mais uma vez, o ataque das instituições do Estado aos nossos projetos de vida e aos nossos direitos humanos. Se necessário, denunciaremos essa nova violação do Estado em todos os foros nacionais e internacionais. Já resistimos ao arbítrio no passado e também resistiremos democraticamente no presente. Um país sem memória é um país sem futuro.